Verbete de enciclopédia

Mayara Roman
4 min readNov 23, 2023

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Das coisas — 7

Chovia de verão, já não era dia no centro da cidade grande, entrei num sebo. Lá tem muita coisa sólida que passou por muita mão e ainda não se desfez. Às vezes eu acho graça dos grifos e notas. Passo pelas mãos as páginas ilustradas de enciclopédias, pensando que alguém em algum lugar leu com ar de grande importância o verbete “cachorro”. Mamífero, desses que a gente conhece. Ou com seriedade irretocável se lia a palavra “cidadão.” Coisa que vem da Grécia Antiga e tem gente que usa pra falar isso e aquilo. Imagina se tu fosse um verbete de enciclopédia. Espécime raro, benfeitor malfeitor, malandragem é coisa pouca, riso perene perigoso. É, vai achando. Lá fora rua brilhava bem bonita — se for ver. Foi massa estar uns instantes ali percorrendo páginas, tudo distante, exceto pelo olhar do dono da loja, viu que eu era turista de butique.

Saí, subi na bike pensando em cidadãos e mamíferos. Engraçado, a gente se define por onde pisa se fazendo gente e pelo que engole se fazendo bicho. Eu detesto sair dos lugares conjecturando coisas sem lugar, mas acontece sempre, é que o vento frio me coloca assim, pensando nas coisas sentindo dor, o ar abafado — estranho — me abraça em seu covil atmosférico, a pressão cai bem gostoso. Daí às vezes a gente pega um resfriado e logo diz pro primeiro que aparece “tempo louco, né?”. Queria nem abrir a boca, mas não dá porque eu sou cidadão, quando queria ser só um mamífero. Vai leitor, eu sei que você cansou também. Chegar em casa que a rua não tá pra isso. Dormir já é um exercício um tanto triste de pausar. Tem algo de solitário em deitar e fechar os olhos e abrir e repetir. Sentido pra quem é de sentido — ai leitor, nunca encontrei papel nesse espetáculo.

E hoje acordei e fazia muito calor. Eu gosto, mas temo a morte e a vida ruim. Acordei e ouvi voz de gente ausente na minha cabeça, quis virar e encostar e empurrar mas não tava ali. Levantei e fui fazer o dia que pensar muito é uma ladeira que só. Daí que entardeceu de novo e me vi empurrando um tampo de madeira com os cotovelos. Na calçada conversando, pediram pro garçom descer mais uma, bati a cinza no chão, sorri e tu riu. Se diz aí que quando a gente empurra a madeira, ela empurra a gente de volta. Aquela coisa do abismo que olha pra gente. Não sei se gosto muito disso, mas é o que tá lá. Não dá pra negar que tem coisa que se a gente solta o peso em cima, logo te coloca pra baixo te põe no seu lugar.

Final de ano é assim, muito planejamento pra correr no despropósito. É findado já novembro, de uns dias já que eu não tava bem mas tava ótima, mas tava chateado com tudo e cansado de explicar e parecer e viver. Ai, que droga. Dia desses teve o de finados. Cemitério tava se apinhado de gente que trazia consigo muita cor. Eu nunca entrei, ainda nunca. Não trajavam roupa preta. Pintaram até faixas amarelas e verdes tangendo o azul que lá já se via. Não entendi por que, mas tem coisa que se pinta assim de brasil que a gente só olha e — tá. Pois veja você que coisa que é um cemitério dando pausa em centro de cidade do interior. É um quarteirão. Coisa que nessa escala nem é pouca nem muita. Do lado tem churrasco de rua, igreja, farmácia. Vivos seguem vivos. Em dia de finados, se vende flores. Cada comércio tem um cachorro que passa lá pedir. Cachorro tem nem mais que caçar, só desce e sobe a rua pelas paradas na calçada e vai tomando o que é seu, com muito garbo e muito gosto. Aprendeu certos modos da gente, e a gente deles desaprendeu a farejar perigo, a caçar da vida.

Tem gente que gosta de caçar, temporada costuma ser final de ano. Pois que fazia uma presa no meio ali caçando coisa, pensei. Tem bicho que não sente medo, se sente parece que é com gosto. Nesse dia brilhava laranja no asfalto molhado a luz do poste. Ele permanecia austero, ereto impassível no céu ciano. Eu olhava pra ele de baixo, pupilas dilatadas, sorrindo com sede — como é bom ver assim — a luz se dissipava de cima e criava sombras nos vincos do concreto. Entardecia aquela tarde sem pedir licença, cobria o dia de amanhã mas ainda tinha muito hoje. E como tinha hoje se arrastando, é isso que eu não aguento. Há mais de uma semana com isso na cabeça, que você tinha me dito e me chamado e sentado na sua cadeira na minha frente. Não tinha mais nada que eu pudesse fazer que não ajoelhar na sua frente, você gosta assim, prometo que me comporto enquanto tu afasta meu cabelo. E batia um feixe de luz da janela cortando o escuro com sol quente. Eu gosto.

Eu gosto que você não desvia o olhar, leitor. Gosto assim, faz assim, olha pra mim, não vira a cara — e você já sabe que eu viro e cuspo porque a única coisa melhor que obedecer é desobedecer, e do não dito eu faço mito e crio um mundo inteiro pra ti. Sabe, não to bem. Nem me olha, nem chega perto, leitor, que se tocar é vendaval. Nesse hoje que não se termina, o amanhã há de me cobrir.

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Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.