Sapato pra andar na rua

Mayara Roman
3 min readMar 8, 2023

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Das coisas — 2

Tinha esse amigo que me disse uma vez que a vida acontece de chinelo. Fiquei pensando naquilo, não sabia que tinha um calçado pra isso. De todas as situações que consideramos ao escolher uma peça de roupa, a vida nunca me pareceu uma opção. Sapato de escritório, sapato de festa. Tem disso ainda? Eu ando de tênis. Com o solado bem fino e gasto dá pra sentir o asfalto ondulado, a calçada craquelada, meter o pé no pedal mais fácil. É que eu sou mais ou menos de São Paulo e de terra, asfalto, concreto, pedra e mato eu acabo entendendo. É o movimento pendular que coloca a gente no chão e então me parece que convém falar de sapatos. Sei que olha pros pés, leitor, pois vem do meu lado andar. Eu andava errando. Sem querer chegar. Querendo chegar sem perceber.

No final da rua no cruzamento se erigia um prédio. Tava se erguendo fazia uns anos. Os tijolos já traziam mofo e se não fosse o fato de estar de frente pra rua de baixo, passaria despercebido na paisagem. Peguei meu celular tirando ele do bolso num movimento que não era nem mais eu que fazia. Vi a cara das pessoas na internet. Li umas coisas rasas que eu desejei que tivessem fundamento. Uma vez eu li que melhor do que se apaixonar é se desapaixonar. Só que li isso em inglês. Em inglês é cair. Cair no amor e cair fora dele. Fall in love, fall out of love. E em língua estrangeira, eu me senti demais caindo dentro e caindo fora. Caindo num túnel e saindo dele. Em um pra entrar no outro. Em português não é cair, é sobre paixão, pathos, coisa de patologia, de estar alterado da cabeça e sem juízo. Em nenhuma língua parece algo que a gente escolheria em sã consciência. E entre uma ficha e outra pro jogo, eu compro amor fiado porque só sento nesse balcão com fome, de cigarro solto um atrás do outro que é pra não fumar de verdade — assim tudo eu pago dobrado.

A quarta-feira de cinzas me cobriu inteira e eu não via jeito de bater esse pó que grudara na pele. Saudade é assim. Cobre de fantasia nossas memórias, é o real em dia de rua e de roupa colorida. Tem que desconfiar, leitor. Memória de brilho e fita no cabelo é só ladeira abaixo. E fiquei pensando se eu teria sido mais feliz aqueles dias de carnaval caso tivesse me coberto de glitter e sol no asfalto livre. Penso que sim. E no final do verão, eu percorria uma rua de aventura e desencontro, de paixões porcionadas, de tristeza empurrada à força na fila da alegria. E o tédio. O tédio era uma coisa nossa que a gente não fala e não sente mais, tristeza adiada. É a desesperança dos covardes, é desamor que a gente sofre com meio sorriso no rosto na hora do almoço. É que esses dias meu celular foi roubado, leitor. Eu te conto outro dia. Hoje te digo que tenho alguns sapatos no meu armário e saudades numa gaveta que eu não abro. Tênis pra correr, pra andar de skate. Até salto tem. Tem bota de chuva. De neve. Pra cada ânimo e solo. Mas eu ando com o pior, pra pisar o chão, trocar rápido os pedais, porque fura e eu conserto e dizem “mas meu Deus”. Com sapato pra andar na rua eu chegava em casa todo dia — carregava também outras avarias que eu deixaria sem conserto, convém só dar uns reparos e chamar de “ficou a minha cara”.

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Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.