Jaz aqui um relógio de pulso

Mayara Roman
4 min readJul 2, 2023

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Das coisas — 5

Repousei meu relógio sobre a mesa. Não funcionava mais, eu insisti em usá-lo um pouco mesmo depois que deixou de mostrar a hora exata. Os objetos, sabemos, nos dizem que sua vida útil está expirando. E sim — andei por aí uns dias com relógio atrasado, o que me acrescentava o trabalho de conferir a hora real por outros meios, somando um descompasso na pilha crescente de problemas. A ansiedade, sabemos, torna-se companheira inseparável, e assim eu viciei nas descargas que ela produzia no meu corpo. Mal sabia eu a exaustão que viria ocupar sua cadeira uma vez que ela tivesse se retirado. Eu adiava o silêncio pois sabemos, ele é impiedoso. São onze horas, mas não são onze horas. O ponteiro pequeno nas onze, o grande nas doze, o sol a pino não nega meio-dia a todos que cortam o dia pela rua. Todavia, era bom crer nos ponteiros. Não digo crer, eu não sei o que é acreditar, mas simular a sensação que teria se fosse real. Eu andei muito mais tempo do que devia com esse relógio quebrado; e só eu sei o que me custou — e ainda custa. Eu não me afeto mais pelo mostrador das horas do metrô, das ruas, do celular, do computador. No pulso, não carrego mais nada.

Agora aprendi que todo relógio conta só meia verdade e me cabe decidir onde termina a mentira e começa a boa intenção — por intenção, entenda desejo. Fé eu não tenho, da cegueira do coração se encarrega o desejo. Esse vem de passo bem compassado bater ponto e cumprir todas as funções que não são de seu cargo. Uma delas, me fazer descrer dos relógios todos. E a gente sabe como é importante um relógio no pulso pra saber que horas são. Pensa quantas vezes você tira o celular do bolso e olha sem se ater às horas. Olha porque pode ter alguma coisa. Pra não olhar pra rua. Olha por movimento aprendido por repetição. Então foi que nesse dia eu repousei o tal relógio sobre a mesa, sabendo que ele tinha me acompanhado pelo dia mostrando as horas erradas pela última vez. Eu olhei pra ele fingindo pra mim mesma que no dia seguinte o prenderia no meu pulso e que as horas estariam todas certas. Sabendo que não, senti uma tristeza idiota.

Era bom sentir aquele pedaço de couro prendendo meu pulso, me lembrando da sua presença vazia, sem propósito, apenas porque eu gostava tanto de ver e tocar aquele relógio. Combinava comigo, um modelo básico, despretensioso, mas no dourado que eu usava em todas as joias, de modo que me apaixonei pelo seu ar de desembaraço, e sem aviso já amava o quanto me era familiar e parecia meu por estar afivelado em mim. A pulseira, por sua vez, era apenas uma pulseira e portanto não prestava atenção aos meus desconfortos, de modo que a fivela por vezes pinçava um pelo ou enroscava nas roupas, puxando fios e causando danos pequenos mas irremediáveis. Valia a pena porque eu achava tão bom virar o braço e saber as horas — mesmo que incorretas, me convenci que não era por mal. Até tentei trocar a bateria, mas aparentemente incongruências de realidade não se resolvem com bateria de relojoeiro. A pulseira laceava, mas eu insistia em lhe presentear com mais furos para que pudesse caber em mim. O uso constante do relógio de pulso teria deixado uma marca de sol no meu braço esquerdo, não fosse a tatuagem que cobria minha pele por completo. Na verdade, a marca estava ali, eu só não via. Às vezes andando rápido, eu batia o vidro do mostrador nos móveis — o que me faz pensar que talvez eu não saiba carregar um relógio por aí, pelo menos não aquele.

O que eu vim contar pra você aqui, leitor, tu que já me olha estranho, é que eu precisava de um canto na parede ao lado da porta pra conseguir sair e chegar. Colocar o arsenal na mesa e o palhaço na coxia. Chegar em casa, não se engane, não é tarefa simples. O carro na garagem. O motor desliga, a cortina fecha, o espetáculo se encerra — sem que eu possa contar pra ninguém. Dentro do carro no banco quente do motorista, o volante em repouso é meu camarim. O símbolo da Chevrolet me encara mais um dia como se dissesse “mas agora só um tango argentino”. O carro dentro da garagem, eu dentro do carro sem poder sair porque não sei como entrar em casa, com que cara, com que voz, com que tom — e mirar a mesa de canto onde devo depositar bolsa, relógio, celular. E o ato falho de esquecer que o relógio não funciona mais. O carro tá com motor quente ainda, eu caio no sono.

O que eu temia — ou desejava, dá no mesmo — era esse porvir que não vem, esse presente de relógio parado. Assim, marquei na agenda o dia de não esperar mais. Agenda, dizem, é coisa séria. Se procurar por aí como resolver sua vida, vão lhe dizer pra começar escrevendo o que tu quer. Eu não sei o que eu posso querer. Eu não sei o que se esconde atrás da dor que a gente gosta. Talvez eu queira me despedir do vento-contra que diz “não vai” quando você tá pedalando sozinho na cidade — à noite, no frio. O vento que a gente escuta assobiando no pé do ouvido — e dói, e porque dói se traduz “vai mesmo”. Engata primeira e toca pra segunda de olhos fechados em todos os erros com convicção — dispara e eu já perdi tudo.

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Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.