Pássaro se conhece pelo voo

Mayara Roman
2 min readApr 27, 2023

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Crônicas do bestiário — 14

Falei seu nome pra mim. Quis sentir todas as sílabas na minha boca, sem que nenhuma chegasse até você. Fiz isso com sono, em horário de resolver pendência. É que eu fiquei com essa pendência na garganta, enterrada no peito. Uma angústia de quarta-feira dessas que não convém levar pra cama em dia de semana. A banda tocava ainda. Se ouvia a duas quadras daqui. Não sabia o nome deles, nem dos do outro dia. Eu também não sei nome de rua. Entretanto, cê sabe, seu nome vinha mais engasgado do que eu queria. Eu quis falar e falei do tempo, é um frio gelado que a gente nem espera. E você me disse que frio é bom, que serra se sobe que nem vê, apertou os olhos elogiando a neblina. A gente falou das coisas do tempo porque falar do tempo é melhor que atravessar aquela rua.

Cachorro solto no mundo sabe atravessar na faixa. Comboio vem desavisado no sinal vermelho mesmo de madrugada e pode passar por cima da gente. É que aqui na minha cidade até pássaro fica em cima do asfalto matutando, como poderia eu então? Pássaro se conhece pelo voo. Tu veio voando baixo, de rasteira brincando de me sobrevoar, era quase como se caminhasse, caminhava ao meu lado, às vezes era um voo sem vergonha só de malandragem. Eu senti o vento da tua asa. Senti assim bem de perto mas fingi que não, e quando era de longe fingia que sim e sabia que não sabia que sabia. Chegou sem cerimônia, depois de ciscar sem querer pousou na janela do meu quarto.

Não mira aquele alvo, se mira já vem tudo transpassado, descalado o sorriso teu que eu guardava no bolso. Então eu queria falar do tempo. É esse tempo que a gente acorda e não sabe como vai ser, mas acaba que todo dia é a mesma coisa, até que de repente não é mais. Tem uma coisa sobre o último trimestre do ano. Parece que vem a galope, parece que demora a chegar o vagão mas na verdade é trilho solto, é cargueiro desses que a gente só imagina. Fazia tempo que eu queria dizer isso e não sabia seu paradeiro. Eu me dou é no asfalto mas a tua rua de terra molhada eu subo de primeira engatada. Danço na cadência dessa ladeira. É um fim de festa calado no peito, eu descobri que tinha como gostar com prazo de validade, gozar cronometrado de relógio parado. Tentei sentir como é olhar pras coisas acreditando. Eu me procuro nos padrões errados, nas frases não ditas, no riso frouxo de quem tá quieto. Se era tragédia anunciada num cartaz do muro, eu queria luz em mim, queria ouvir a o silêncio do salão, pisar o palco e trazer no rosto bonita pintura de palhaço — e ainda que a plateia fosse mera cadeira vazia, o coração selvagem descortinava da jaula em um espetáculo escondido.

Texto selecionado para compor a Antologia de Crônicas na Premiação Off Flip 2023.

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Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.