Feriado religioso

Mayara Roman
2 min readApr 7, 2023

--

Das coisas — 4

Eu quis mudar tudo na sexta-feira santa. Eu que sou ateu e não sei pedir nada pra santo, pensei que era melhor continuar sem ter fé. Quem fala com Deus fala com quem? Queria entender às vezes. Não é coisa de birra, filosofia nem angústia. É que eu vim sem mesmo. Nasci sem fé, sem crença, sem esperança. E quer saber como é, leitor? Eu tenho medo de morrer, não odeio a ideia, mas tenho medo. Eu olho e não vou. Mas tem dias que custa bater o ponto de acordar e se ver mais um dia sobre terra firme. Sem todos esses alicerces, o desejo é território perigoso. Não tem tratamento paliativo. É correr na chuva sem pastilha de freio. É apagar as lanternas em estrada fechada pra ver no que dá. Eu falo, falo, minha voz ricocheteia na minha cabeça todas as respostas possíveis. Não tenho nada além do meu nome, sou sozinha. O problema é que fala que não se escuta mora em um campo que eu não quero mais pisar. O carro fechado, de motor quente na garagem é essa morada da solidão, do toque macio na aresta da loucura. Mas hoje não tomo muito do seu tempo, que isso também tem dia que cansa.

Me vi sob o julgo impiedoso do silêncio. Ele traz pra gente todas as caixas empilhadas no armário, todos os sacos esquecidos no baú. Do dia que eu fui um outro, menos amargo, mais doce, consequentemente menos cômico. Eu quero gritar a saudade que eu sinto de mim. Então às vezes convém lembrar. Lembrar que não existe benefício em saber de verdades que não nos foram ditas. Lembrar que o tempo passa e cada dia triste é um dia a menos. Lembrar que toda mentira carrega uma verdade que queremos ignorar. Lembrar que tem roupa que serve, fica bem no corpo mas o tecido já esgarçou, traça na gaveta já roeu, mancha de café não saiu. Lembrar de abrir espaço nas gavetas. Lembrar de abrir as janelas pro sol entrar sem ansiar pelo raios do outro lado da cidade. Lembrar que tem gente aqui do lado. Lembrar que eu tô aqui e preciso andar.

--

--

Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.