Console de carro

Mayara Roman
3 min readJan 15, 2023

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Das coisas — 1

Console do carro

Tinha um parafuso solto no console do carro. De tempos em tempos, ele saía sozinho e ficava deitado ali no compartimento, como se fosse um objeto esperando ser usado. Junto com as moedas do pedágio e os pedaços de papel. Você falou um dia que ia trazer um parafuso pra mim. De alguma forma, todos os tipos de parafuso, de todos os tamanhos e formas estavam disponíveis. Aquele que eu precisava também. Ficou de ver. Entrei no carro hoje e em meio a cinzas de cigarro — eu não fumo — papéis e chaveiros, eu achei o parafuso. O console tava solto de novo. Eu acho que isso é de fábrica. Todo problema do carro é de fábrica, desses que são recorrentes e eu não resolvo. Como eu tenho feito há anos, peguei o mesmo parafuso já espanado e posicionei de volta no lugar. Daqui a alguns dias ele voltaria pra caixinha do console, sem aviso prévio nenhum. Eu tenho que comprar outro. Um carro que anda cheio é um contrato com a falta. Eu tenho sentido falta. Como que pode, tu vai me perguntar. Dizem que eu sou exagerada.

Pois eu peguei a estrada sem mapa. Tava escuro, tava chovendo. Tem alguma coisa no carro quando fecha a porta de si e ressoa macio o asfalto. Não tem ninguém. A garoa tingia o vidro de invisível. Era tudo acreditar porque a imagem tornara-se turva. Como uma pintura impressionista de transparência e luz vermelha refratando. É que eu tenho astigmatismo e tudo fica assim meio difuso colorido.

Um carro que anda cheio é um contrato com a falta. Quando você entra, sabe que está sozinho e fecha a porta e pega a estrada. Olha e é a estrada que te olha de volta. Já viu, né? Aquela história do abismo. Se você olha ele bem no fundo, ele pega e te devolve. Se você olha de canto, ele faz pior e ricocheteia que não tem pra onde ir, não tem choro nem vela.

Tenta você fazer uma lista que seja. Tenta ficar sozinho — mesmo. Tinha uma nota na minha carteira. Um recibo de bar, junto com nota do posto de gasolina. Eu amassei e joguei fora, o punho cerrado. Me olhou de volta a estrada naquela hora. E se eu bater o carro? Imagina. E se for bem rápido, e se como máquina deitar meu peso no acelerador? É uma coisa esse pedal que fica aqui embaixo do pé muito domesticado e ensinado a não morrer. Pensei na lataria amassando. O impacto no corpo. O pensamento me assustou, eu gostei, senti no corpo correr o sangue mais quente, nos braços mais frio. Eu queria desviar o olhar. Era o que mandava o costume. E porque podia pensar assim, meu pé tornou-se leve e comedido sobre o acelerador, no assoalho de mim que era a redoma do carro.

Pode ser também que viesse um caminhão. Vai saber. Um cargueiro com tudo. Pensava nisso e não tinha mais na cabeça aquele parafuso. Tava tudo bem, se diz por aí que a gente tem que ter coração forte pra aceitar o que não tem remédio. Vai saber. Eu tenho muitas coisas que não posso mudar. São tangíveis. Às vezes passeiam pelos meus dedos e depois eu as devolvo no lugar. É uma pendência toda, é uma dor perene que dá pra engolir fácil com a quantidade certa de café e desapego. Dito isso, todos os pneus que eu trazia arriados por você estão carecas. E assim quero que eles permaneçam, vou deixando. Decerto que o leitor já viu apodrecer na fruteira uma laranja. Viu sua casca brilhante tomar um manto esverdeado de veludo. Aposto que já soprou esse veludo putrefato de vida para longe e mesmo também por isso que voltava um pouco no teu nariz.

Eu queria peso deitado em mim e deitar no acelerador e penetrar o carro da frente e ter o de trás inteiro em mim. É isso que acontece se fechar a porta do carro. Eu respirei, esfreguei os olhos e parei no posto. Tava acostumada a dirigir com sono. Tava sem combustível. Joguei a nota fiscal dentro do console cobrindo o parafuso. Igual, funciona do mesmo jeito — é só esquecer que está descompassado que a estrada não nega viagem a ninguém.

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Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.