Casa do Diabo

Mayara Roman
3 min readDec 12, 2023

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Das coisas — 8

Leitor, me diz uma coisa, tu acredita em Deus e diabo? Pois eu não. Não acredito na minha memória também, e uso ela do jeito que dá pra falar com você. E hoje vamos falar sobre coisas que não acredito, mas são reais porque a ficção materializa coisas que somadas são a gente. É assim que se doma um coração selvagem. É, pensa tu, cai nessa não. Se eu lembrar da minha infância, sinto o azulejo frio nos pés, o tapete esgarçado na nuca. Sabia bem fazer nada. Hoje não dá, fica mal e esqueci como é. Ocupava os espaços fazendo cubo com o corpo. Era eu e o tempo e os rejuntes do azulejo, os desenhos de flores e borboletas amarelados. Abria a porta de espelho do armário do banheiro e, ao fechar, fingia me espantar com a minha figura. Muito filme eu via.

Hoje tragicamente sou adulto e dirijo. Já tava chegando em casa, queria só fazer café. Ficar lembrando é bom, mas não por muito tempo, passar de cinco minutos já desce ruim. À tarde a dona da casa ali na rua se debruçava na janela. Na laje um casal de velhos fumava. Eu dirigia sem cinto e sem muita questão. Fui fazendo tudo em silêncio. Eu não gosto tanto do silêncio, ele tem um semblante que eu hesito em mostrar na rua. Tem gente que já viu, mas não era pra ver. Daí que a noite caiu quente, de olhos abertos era um labirinto descampado que eu via dentro de casa. Quando fica assim já tarde, convém ir deitar. Na cama, leitor meu, a luz do celular iluminava meu rosto. Será que é assim que você me lê? Sempre penso. O que é feito de um desejo que não dá pé na água?

E eu, que não tinha santo e não sabia rezar, tava com medo do diabo outra vez. Esse sabe demais, sabe que horas o silêncio me assombra. Acho que ri pra mim no espelho porque sabe que pode rir que eu faço chorando. Quando dirigia sozinho, às vezes via seus olhos presos em mim pelo retrovisor. Bonito, calmo, assertivo. Sabe que a solidão é um camarim, e eu sou dramático, não dá palco pra palhaço. Quem diz que no inferno arde fogo nunca foi lá. É quente, sim. As paredes irradiavam calor, encostei no gesso e falei seu nome. A pressão caindo aos poucos, tão bom assim. Não quero me mexer. Fiz você chamar meu nome. O ar úmido que entra pelas narinas é o único que tem aqui. Ainda bem. Fechei a porta do lado de fora, respirei ar da rua como quem observa os próprios pensamentos com muita seriedade. Imagina.

Nunca fui boa em me levar a sério. Bom pra mim. E viu, daí que soube que tinha que descobrir seu endereço. O paradeiro, aí que tá o azar, é um ponto no tempo, e como te disse outro dia, meu relógio tá quebrado. Engraçado, sabe, nenhum relógio tem a coragem de me mostrar a hora certa. Se eu soubesse onde o diabo mora, iria lá dirigindo. Sozinhe, sem santo guardado no bolso. Eu bem que queria, sabe. Eu iria com medo, sei que meu único desejo vivo custa caro, custa tudo.

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Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.