Bolso sem celular

Mayara Roman
4 min readMar 22, 2023

--

Das coisas — 3

Esses dias meu celular foi roubado. Já faz mais de uma semana e eu pouco me esforcei para conseguir outro. É diferente dos últimos anos essa coisa de andar por aí sem estar ao alcance dos outros dentro do próprio bolso. Não tenho pra mim e nem para dar o luxo da urgência. Eu fico olhando para as paredes, para o céu e para as pessoas e as coisas sempre que me pego com a tarefa de esperar. Não gosto, pra falar a verdade. Pois bem, eu já tenho os olhos bem abertos para as belezas que tem por aí e a vista grossa demais pro perigo que me rodeia. Escrever é um jogo solitário, porque você me lê e porque não lê, porque sabe que tô falando contigo, leitor. Porque sabe que vai sentar na minha frente e não vai sair ileso. Mas fica, eu aprendi a guardar a fome. Com você perto, eu não tenho defesa, mas ataque às vezes a gente nem espera, tem bicho que dorme semanas com a presa. Dizem que se o animal sentir por perto o cheiro de seu predador, é uma morte iminente enquanto perdurar o cheiro. Meu faro é bom pra um humano. Presa que se aninha quente no covil dorme com um olho só fechado. Mas tem dias que não. Nesses dias eu dormia bem, dormia leve no seu colo. Essas entradas que tu tem se tornaram terra fácil demais pra usocapião. Eu aprendi a aparar o terreno, fazer meu, fazer morada e levar do despejo o banho quente e o sorriso desarmado. É que eu sinto fome e a fome acorda antes de enfraquecer. E eu sinto sede que só mata com leite fresco. Queria aprender a desarmar. Aprendi que desmaiar é não morrer mais um dia. Cada dia um dia a menos, cada encontro um dia a mais, cada jogo somava uma dívida sem número.

Eu tava na rua, era noite bem tarde. Pra quem tem os pés no chão e o frio da adrenalina guardado na carteira, o carro ligado era um jogo de azar. Eu fui jogar na rua antes de pegar estrada. Tava rindo e esperando a vez. O leitor sabe que riso não vem só, se vem é caso de desatino. De loucura. Às vezes, a gente precisa eclodir no riso do outro pra não ficar louco. Por isso, eu sento você mais uma vez aqui na minha frente. Tava na rua rindo um riso dos outros e me chegaram com um baralho para cortar. Eu cortei e peguei uma carta, como me foi solicitado. Queria poder dizer a carta que saiu, mas eu não lembro. Não vejo significado nas coisas criadas para ter um significado. O que eu vi foi que tava tarde e eu tava sem meu relógio de pulso. Eu vivo batendo ele nas coisas, ando agitando os braços, me expandindo mais do que deveria. Talvez eu devesse ficar quieta, silenciar, calar, reduzir.

Isso foi em São Paulo. Quase no mesmo dia, na minha cidade, passei pela rua do cemitério. Tava trânsito e eu fiquei parada ao lado do portão, que tava aberto. A escada azul convidava a subir. Pra quê, eu não sei. No topo se via Nossa Senhora. O que tinha de diferente era seu manto, tava pintado de amarelo. Atrás dela, outra estátua de mesmo tamanho trazia no rosto uma pintura de palhaço. Era um enlutamento colorido na beira da avenida, na parte da escada guardada pela sombra.

Veja só você, me tornara andarilha de mim mesma. Minha mochila anda cheia. É que de ficar na rua uns dias em lençol amigo e coberta de gente estranha, a gente vai criando casa no carro. Tu deita a cabeça no meu colo e fala comigo e fala coisas que a gente não vai querer lembrar. Me empurra, se enterra em mim, é nesse grito abafado com tua mão na boca que eu perco o jogo. O silêncio não me ouviu. Eu gritei inteira na sua boca e você disse que sim. É na terra batida que a gente descobre se tá pisando firme ou em falso. Eu sempre pisei bem forte, errando todas as estradas com convicção. Eu não me atentei ao vão entre o trem a plataforma — ou me atentei até demais, não parei de olhar. Derrubei um anel ali. Tudo bem, nem anel eu uso, era uma coisa que tava andando comigo pra ser perdida assim, sem que eu pudesse escolher ou guardar em casa. Eu vi certa graça em perder — dancei com a ausência, o vazio dentro de mim foi meu namorado. Se o peito aperta, o relógio diz engole. Engole e chora e chora e engasga e nem ligar eu ligo, ce sabe que eu aguento rindo e quero de novo. Mas o anel ficou ali no chão dos trilhos, um chão que eu fico olhando e pensando — melhor olhar pra frente, deixa os trilhos pra quem é de trilho, eu to no asfalto e algumas aventuras não são pra gente.

Tem morte que a gente não sente na hora, mas antes. Tem muito vivo que a gente já enterrou sem velar o corpo ou fazer missa de sétimo dia. E eu lembrei de um dia que você me olhou de cima, sendo mais alto que eu em estatura e atitude, olhou baixo chegando perto. Perguntou assim como quem solta um suspiro, por quê? Me perguntou o que me trouxe até ali. Por que eu gostava tanto. Talvez naquele momento eu tenha percebido que gostava era de jogar a vida com dado viciado.

--

--

Mayara Roman

Brasileire não-binárie que faz prosa com medo de rimar.